sexta-feira, 23 de maio de 2008

Che, resistência sem perder a ternura

Fonte: Jornal O Estado de São Paulo - 23/05/08

Mesmo com quase 4h30 de duração, obra de Steven Soderbergh sobre o guerrilheiro atraiu e seduziu um público enorme

Luiz Carlos Merten, CANNES

Steven Soderbergh trouxe um historiador, Jon Lee Anderson - biógrafo de Ernesto Che Guevara -, para a coletiva de seu filme sobre o mítico guerrilheiro cubano-argentino. Che divide-se em duas partes. Na primeira, é selada a aliança de Che e Fidel Castro, começa a campanha que, a partir de Sierra Maestra, conduz a Havana e ao triunfo da revolução contra Fulgencio Batista, entremeada de cenas em preto-e-branco que simulam um documentário sobre o Che na assembléia-geral das Nações Unidas (e defendendo a revolução junto a intelectuais norte-americanos). A segunda parte concentra-se na campanha boliviana. A primeira é épica, a segunda, centrada no fracasso, acentua as crises de asma que consumiam a figura real. Por detrás do mito, Soderbergh busca o homem.

Anderson disse que existem vários Ches Guevaras. Para os países ricos, do chamado Primeiro Mundo, ele é um item de consumo, uma t-shirt que os jovens, principalmente, consomem como a de qualquer outro ídolo da cultura de massas. Para os países do Terceiro Mundo, e especialmente os da América Latina, Che é um ícone da luta revolucionária e da resistência à opressão imperialista. O Che não sai de moda, assinala Anderson, e ele acha que sua importância não fica diminuída - pelo contrário - pelo fato de os representantes das classes oprimidas estejam chegando ao poder democraticamente, pelas eleições, sem derramamento de sangue. Ele poderia citar Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil e Evo Morales, mas não o fez. Generalizou.

Soderbergh citou Morales. Che foi um precursor, pregando, há 40 anos, uma luta que os camponeses e índios bolivianos não apoiaram porque, de certa forma, ainda não tinham consciência de sua força. É uma frase do filme - quase no fim da segunda parte, o Che, derrotado, faz sua autocrítica, mas também diz que, quem sabe, no futuro, as massas bolivianas não se levantarão em nome de mudanças radicais? O futuro, na coletiva, ele deixa subentendido que chegou, o que relativiza a crônica do fracasso na segunda metade de seu filme. Che termina, aliás, com um plano enigmático que é bom não antecipar, mas com certeza terá de ser objeto de análise na estréia do filme.

Havia gente pelo ladrão para ver Benício del Toro - impressionante - na pele do Che, na quarta-feira à noite. Simultaneamente à sessão de imprensa, realizava-se, no Palais, a de gala, com direito a tapete vermelho. Che tem exatamente 268 minutos, quase 4h30 de duração. Passou em duas partes, e no meio a empresa produtora - a Warner França, que concordou em financiar o filme falado em espanhol - distribuiu sanduíches e água aos jornalistas de todo o mundo. O filme deixa uma impressão estranha. A primeira parte, a épica, é para cima e tem cenas de um western em que os mocinhos ganham. A segunda, a do fracasso - mesmo que relativo -, é para baixo e o herói trágico, demasiadamente humano, morre por seus erros, mas sem transigir com sua dignidade. Soderbergh disse uma coisa interessante - que não é preciso compartilhar as idéias do Che para reconhecê-lo como um dos grandes personagens do século 20 e o seu idealismo, a sua luta pela melhoria do ''outro'', como um marco da consciência humana.

Narrado quase como um documentário reconstituído, sem outras cenas íntimas que não aquelas que se referem ao personagem político - Che faz cinco filhos, mas não existe uma cena ''romântica'' -, o filme desconcerta justamente na segunda parte, que parece burocrática (como narrativa), mas que é a melhor, segundo Soderbergh. Ele não fez um filme respeitoso com o mito (ponto a seu favor). Soderbergh admira o personagem, mas falta alguma coisa - o quê? A paixão? Rodrigo Santoro, rapidamente entrevistado pelo Estado - ele faz o hoje presidente Raúl Castro -, amou a humanidade do Che de Soderbergh e disse que compartilhar da equipe montada pelo diretor, formada por técnicos e artistas de todo o mundo, foi como compartilhar o sonho universalista do Che.

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