segunda-feira, 2 de junho de 2008

A nossa surpresa em Cannes

Fonte: Revista Época - 02/06/08

A atriz Sandra Corveloni arrebatou o júri do Festival e ganhou o segundo principal prêmio do cinema mundial logo na sua estréia

Rodrigo Turrer

"O prêmio me tirou da tristeza e da prostração"
Sandra Corveloni gastou a última semana explicando ao mundo quem é. “Minha rotina agora é dar entrevistas”, diz a atriz de 43 anos. Justificável. Afinal, a desconhecida Sandra embasbacou o mundo do cinema em Cannes ao desbancar as divas Juliane Moore e Angelina Jolie, arrebatar oito dos nove votos do júri e ser escolhida a melhor atriz do Festival por sua atuação em Linha de Passe, dos diretores Walter Salles e Daniela Thomas. De lá pra cá, ela trocou o relativamente pacato revezamento entre família, aulas de teatro que ministra e ensaios de peças, por uma média de dez entrevistas diárias. “Minha vida virou de cabeça pra baixo. Estou sempre pendurada no telefone.” O sinal das mudanças é visível. Sandra agora vive cercada por assessores, que monopolizam suas entrevistas e controlam seu tempo com rigor britânico. Também leva uma amiga a tiracolo, para ajudar com os celulares e relaxar de vez em quando, “porque ninguém é de ferro, né?!”. O espaço em branco nas folhas de sua agenda sumiu. Assim como sua voz, que de tanto falar com jornalistas ficou rouca. A transformação em celebridade instantânea ainda é recebida com estranhamento pelo marido, o professor de italiano Maurizio de Simone, com quem é casada há uma década, e pelo filho Orlando, de seis anos. “Ele não está entendendo nada, tadinho”, diz Sandra. Era com Orlando que ela brincava na sala da sua casa, na zona sul de São Paulo, “desligada do festival”, quando recebeu a ligação confirmando sua vitória. E dando início a vertiginosa caçada da imprensa por suas declarações. Tamanho assédio pode ser compreendido pelo ineditismo do feito de Sandra. Linha de Passe é sua estréia no cinema. Antes desse filme, ela havia trabalhado em meia dúzia de curtas experimentais. Seus vinte anos de carreira foram dedicados aos palcos. No papel de Cleuza, uma empregada doméstica moradora da periferia de São Paulo, grávida e mãe de quatro filhos que querem mudar de vida como jogadores de futebol, ela ganhou o principal prêmio cinematográfico do planeta depois do Oscar. É verdade que Cannes aposta em novatos - mas nem tanto. Sandra é uma das raras atrizes a emplacar com o troféu máximo do festival logo de cara. Nessa entrevista, ela fala sobre essa conquista, as dificuldades para se tornar atriz profissional, e como o prêmio a ajudou a sair de uma tristeza profunda por causa da perda de uma gravidez.
ÉPOCA - Como você soube que havia recebido o prêmio?
Sandra Corveloni - Eu sabia que, por volta de três horas da tarde, estava começando a cerimônia de premiação, e pensei em entrar em contato com a Daniela [Thomas, diretora do filme com Walter Salles], em Cannes. Mas não liguei. Comecei a brincar com o meu filho, fazer as minhas coisas, e estava desligada de Cannes quando tocou o telefone. Era a Ana Luiza, assessora de imprensa do Linha de Passe. Estava uma loucura, porque ela falava comigo, falava com o Walter, com todo mundo que estava do lado dela, uma baita confusão. Ela me deu parabéns e eu perguntava: “parabéns por quê?”. Em seguida, ela me disse que ligaria depois, de novo. Fui para internet procurar, e nada. Logo ela me ligou, e disse “confirmadíssimo! Você ganhou o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes”. Foi uma gritaria, uma choradeira. Meu filho não entendia nada, perguntou se minha peça tinha ganhado.
ÉPOCA - Você esperava ser escolhida quase por unanimidade como melhor atriz?
Sandra - Eu esperava um prêmio coletivo. Sempre torci por isso. Mas eu não esperava que a minha personagem arrebatasse o júri dessa maneira. Eu achei que o filme tinha potencial, poderia até ganhar como melhor filme. A história vai fundo na alma da família, na ausência de um pai, das oportunidades escassas, da violência, um tipo de realidade de muitas famílias brasileiras. E é um filme coletivo. Apesar de a Cleuza ser a única mulher, a mãe, ou como disse o Walter Salles, a coluna moral para onde os filhos sempre voltam, ela não é a protagonista. Por isso nunca passou pela minha cabeça que eu poderia ganhar.
ÉPOCA - O que significou pra você essa premiação?
Sandra - Olha... a ficha ainda não caiu. Claro que estou felicíssima, honradíssima. Abre uma janela enorme para mim. Mas está uma loucura, porque logo que soube da premiação começaram os telefonemas e as entrevistas. Minha vida virou de cabeça pra baixo. Eu tenho falado pelos cotovelos. Todo mundo quer saber como foi. E é normal. A gente tem de compartilhar mesmo.
ÉPOCA - Quais as principais mudanças que você sentiu na sua rotina?
Sandra - Minha rotina agora é dar entrevistas. Eu estou sempre pendurada no telefone. Em casa, eu não consigo. Tento manter um tempo para ficar com meu filho, fazer as coisas da escola com ele, mas está bem difícil. De domingo à tarde até agora tenho dado quase dez entrevistas por dia. Está impossível ficar com ele, conversar. Até pra comer, dormir, trocar de roupa está difícil.
ÉPOCA - E sua família?
Sandra - Meu filho Orlando, de seis anos, não está entendendo nada, tadinho. Aliás, outro dia na TV disseram que ele tinha cinco anos, e ele ficou bravo. Disse: “eles falaram que tenho cinco. Mas eu tenho seis. E meio” (risos).
ÉPOCA - Você é uma atriz de teatro consagrada, com mais de 20 anos de carreira, mas nunca teve tanta atenção da mídia como agora. Esse assédio, digamos, tardio, da imprensa a incomoda?
Sandra - Não. Acho supernatural que as pessoas queiram saber. É importante. Claro, a gente de teatro batalha pra conseguir matéria e tem dificuldade para sair em jornais e revistas. Mas, ao mesmo tempo, acho que estou divulgando o trabalho do teatro e dos atores, além do filme. É um trabalho que vai levar para o mundo inteiro uma realidade do cinema e do teatro brasileiro, porque no filme tem uma porção de gente de teatro.
ÉPOCA - Como foi passar do teatro para o cinema?
Sandra - Foi bem tranqüilo. Trabalhei muito com a Fátima Toledo [preparadora de elenco]. E o Walter e a Daniela sabiam exatamente o que queriam. Foi um processo profundo de trabalho, sem correria, sem pressa para ficar pronto. Então foi fácil. Claro, sou atriz de teatro, e um pouco exagerada por natureza. Então, no começo, eu sempre era alertada, “menos, Sandra, menos”. Mas depois foi natural, e não senti tanta diferença.
ÉPOCA - Por que você demorou para estrear no cinema?
Sandra - Eu já tinha feitos alguns testes antes. Mas sempre perdi oportunidades porque estava muito envolvida com o trabalho no teatro. Às vezes não dava para conciliar. Dessa vez a Denise Weinbberg [atriz], que está no filme, me indicou para fazer o teste. Eu fiz uma vez, eles gostaram, fiz outro... No total, fiz três testes com a preparadora de atores, e um teste para câmera. Eles aprofundaram os testes e gostaram. E eles também sabiam o que queriam, o que estavam procurando, o que ajudou muito.
ÉPOCA - No filme você interpreta uma mãe-coragem, uma mulher que vive na periferia e é mãe e pai de quatro garotos que sonham em mudar de vida como jogadores de futebol. Aquela paisagem da periferia não é totalmente estranha para você, certo?
Sandra - Não. Como já fiz teatro em muitos lugares de São Paulo, conheço bem a cidade. Não me assustou aquela periferia da Zona Leste, mesmo tendo ficado lá só uma semana. Participava de caravanas da prefeitura e já me apresentei em todos os lugares possíveis, fiz espetáculos itinerantes nos confins da Zona Sul à Zona Norte. Você passa por tudo. Conheço muito São Paulo e sabia como era.
ÉPOCA - Mas você também vem de uma família humilde, não?
Sandra - Sim. Nasci em Flórida Paulista, no interior de São Paulo, e vim para a capital [paulista] com cinco anos. Eu, meus pais, uma irmã e um irmão mais velhos. Meu pai era agricultor, tinha um sítio lá e as coisas estavam difíceis. Ele se cansou daquela vida e resolveu aproveitar um convite de uma tia minha, que prometeu ajudar e sabia de um trabalho pra ele, numa gráfica. Viemos morar em Pirituba. Mas, na minha infância, ali era bem mais tranqüilo. Pirituba parecia uma cidade do interior, todo mundo se conhecia, a gente ia a pé pra escola. Então, meu conhecimento da periferia é muito mais pelas minhas viagens por São Paulo.
ÉPOCA - E como você começou a estudar teatro?
Sandra - Queria alguma coisa, mas não sabia o que era. Tinha feito colégio técnico no Senai e estava bem encaminhada. Havia ido bem num estágio no Instituto de Pesquisas Tecnológicas da USP, e arrumei um emprego bacana. Mas não estava feliz. Quer dizer, tinha 19 anos, ganhava superbem, fazia um trabalho legal, que eu gostava, mas... não estava bem. Então comecei a fazer umas aulas de dança, de expressão corporal, e percebi que aquilo tinha a ver comigo. Comecei a procurar coisas mais específicas no teatro, e fiz uma oficina no Sesc Pompéia. Me apaixonei. Aí emendei uma coisa na outra. Montei grupos de teatro amador, depois de me formar no Tuca [Teatro da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo]. E logo depois, em 1991, fiz Beckett In White, minha estréia profissional. Foi quando participei de uma oficina no Tapa [coletivo teatral paulista], e fiquei. Faço trabalhos com outros grupos, claro, mas estou no Tapa há uns 15 anos. Sempre em contato com eles.
ÉPOCA - Você passou por muitas dificuldades pra se tornar atriz, então?
Sandra - Nossa! Levei muita porta na cara e balde de água fria na cabeça. Fiz teatro em empresas, para alertar sobre segurança no trabalho e era horrível. Quando fazia escola de teatro, fiz até animação de festa infantil. Era uma loucura. Um dia, estava vestida de Emília do Sítio do Pica-pau Amarelo e as crianças cortaram minha peruca. Aí falei: “chega” e larguei isso. Mas fazer teatro é sempre meio difícil.
ÉPOCA - Sei que é um assunto delicado, mas você sofreu um aborto recentemente. Como é lidar com dois sentimentos tão distantes: a dor pessoal da perda, e a conquista profissional inesperada?
Sandra - Na verdade sofri um parto prematuro. Era um bebê grande, de cinco meses, bem desenvolvido. Foi complicado. Tive várias complicações, passei por cirurgias. Foi uma loucura. Isso foi no dia 6 de maio. Por isso eu não fui pra Cannes. Mas realmente é estranho. [Silêncio] Isso me tirou da tristeza, um pouco. Me obrigou a levantar de qualquer jeito. Foi um presente na minha vida. Me tirou da tristeza e da prostração. Estava muito, muito, muito triste. Com o prêmio, tive que sacudir a poeira e virar meu pensamento, mudar o foco completamente. E de uma certa forma foi muito bom, eu melhorei. Fiquei melhor emocionalmente.
ÉPOCA - Como você não foi para Cannes, ainda não recebeu o prêmio em mãos, certo?
Sandra - Não. Acho que vou pegá-lo só nesta semana. Estou ansiosa para ver o Walter voltar de Cannes com o prêmio. Vamos nos encontrar para conversar sobre o filme, porque ainda tem muita coisa para acontecer, foi só o primeiro festival. Vou ficar feliz quando receber, porque é o símbolo disso tudo que está acontecendo.
ÉPOCA - Você está ansiosa quanto ao futuro? Já tem novos projetos?
Sandra - Vou trabalhar na divulgação do filme, que estréia no segundo semestre. E tenho muitos projetos com o Grupo Tapa. Eu continuo de co-dirigindo o espetáculo “Amargo Siciliano”. Ainda não recebi novos convites profissionais.
ÉPOCA - Acha que pode ser indicada para novas premiações? Um Oscar, como a Fernanda Montenegro depois de ganhar o Festival de Berlim por "Central do Brasil"?
Sandra - Não penso muito nisso, para ser sincera. Tudo pode acontecer, mas não quero ficar criando expectativas, viajando nessas. Sou muito pé-no-chão, e não gosto de contar com o ovo dentro da galinha.

Infantil maduro

Fonte: Revista Veja - 02/06/08
Com seu segundo episódio, Príncipe Caspian, a série Nárnia ganha em intriga e intensidade

Isabela Boscov

William Moseley, como um dos irmãos Pevensie: batalhas violentas – mas sem sangue

Que seria dos autores de fábulas sem recursos como o que dá mote a As Crônicas de Nárnia – Príncipe Caspian (The Chronicles of Narnia: Prince Caspian, Estados Unidos/Inglaterra, 2008)? No primeiro filme da série baseada nos livros do irlandês C.S. Lewis, os quatro irmãos Pevensie iam parar na terra encantada do título, da qual descobriam ser os soberanos. Nesta continuação, desde sexta-feira em cartaz no país, os Pevensie, depois de cumprirem um longo reinado, estão de volta a seu tempo e lugar originais – a Inglaterra da II Guerra. Para eles, apenas um ano se passou; mas, em Nárnia, para onde são reconvocados por um chamado mágico, algo como 1.000 anos transcorreram. Seu antigo reino está em ruínas, e seus habitantes foram quase todos dizimados pelo reino vizinho de Telmar. Aí, também, algo vai mal: um nobre usurpou o trono do herdeiro legítimo, o príncipe Caspian, e não vai descansar até tê-lo assassinado. Caspian é quem chama os irmãos de volta: sem o seu amparo e a influência que eles podem exercer sobre os narnianos remanescentes, ele não tem chance sequer de sobreviver, quanto mais de destronar o ganancioso rei Miraz (o italiano Sergio Castellitto, em grande forma). O truque da discrepância temporal – um ano numa dimensão, dez séculos em outra – faz parte do feijão-com-arroz dos autores de fantasia, e não se pode acusá-lo de originalidade. Mas aqui ele se presta a pelo menos uma vantagem: da mesma forma que os protagonistas, obrigados a olhar de frente os escombros de seu passado glorioso, também o enredo e o estilo cresceram.

A exemplo de Harry Potter, o calcanhar-de-aquiles de Nárnia está no seu elenco principal, que vai crescendo sem manifestar grande talento. Ben Barnes, que interpreta Caspian, é uma presença agradável, embora prejudicada pelas falas genéricas e pelo cabelo com jeito de quem acabou de fazer escova. Mas trata-se de pormenores: agora, a intriga pelo poder é sombria, Telmar e Nárnia têm uma questão de vida ou morte a decidir, e as batalhas são consideravelmente mais violentas (embora livres de sangue). Para o público infantil, responsável pela bilheteria estrondosa do primeiro episódio, esta seqüência parecerá um bocado mais assustadora. Mas também bem mais compensadora. Com sorte, Nárnia há de seguir Harry Potter também em outro caminho, o do amadurecimento criativo – e, quem sabe, chegar ao terceiro filme surpreendendo não só pela boa vontade, mas pela originalidade.