domingo, 25 de maio de 2008

''Ele tem a força da ressaca''

Fonte: Jornal O Estado de São Paulo - 25/05/08

No centenário da morte do escritor, o Cultura publicará no último domingo de cada mês depoimentos de artistas sobre sua relação com a obra do mestre da literatura nacional

Gilberto Mendes

Comecei a ler livros de gente grande com 14 anos. E comecei pesado, com Eça de Queiroz. Li quase tudo dele. Minha família, sobretudo meu pai, médico, gostava muito do Eça. Cresci no ambiente do culto ao Eça. É magnífica a elegância e charme cosmopolita, parisiense, lisboeta, da sua linguagem. Na minha juventude, aliás, havia dois times de admiradores bem marcados: o do Eça e o do Machado. A turma do Eça era mais aberta, generosa; já a turma do Machado era radical, gritava contra o que considerava a verborragia do Eça. Eles adoravam a linguagem enxuta.Comecei a ler o Machado de verdade mesmo aos 24, 25 anos. E ainda assim achando que não iria gostar muito. Mas gostei. E muito. Dom Casmurro foi o primeiro romance dele que li e permanece para mim como sua obra-prima. De modo inesperado, ele aqui é mais sensual, deixa um pouco de lado a coisa estrutural, o trabalho de linguagem tão característico em sua literatura. Não consigo esquecer a descrição que ele faz da Capitu logo no começo do livro.Capitu estava ao pé do muro fronteiro, voltada para ele, riscando com um prego. O rumor da porta fê-la olhar para trás; ao dar comigo, encostou-se ao muro, como se quisesse esconder alguma coisa. Caminhei para ela; naturalmente, levava o gesto mudado, porque ela veio a mim, e perguntou-me inquieta: - Que é que você tem? - Eu? Nada. - Nada, não; você tem alguma coisa. Quis insistir que nada, mas não achei língua. Todo eu era olhos e coração, um coração que desta vez ia sair, com certeza, pela boca fora. Não podia tirar os olhos daquela criatura de 14 anos, forte e cheia, apertada num vestido de chita desbotado.Capitu é a minha personagem machadiana preferida. A dúvida existencial não me interessa, mas é genial o modo como ele bolou isso pra botar a dúvida na cabeça do leitor. Eu, de minha parte, diria que ela traiu Bentinho com Escobar, as características dela são as de quem trai. Ela é tesuda. Aliás, o interessante de Dom Casmurro é que nele Machado assume um tesão humano, sensual, aparentemente distante de seu universo como escritor em tantos outros livros, que privilegiam a ironia, os meios-tons. Aqui, a sensualidade, o tesão, são às claras. Eu me lembro de outra passagem mais adiante, em que ele descreve o penteado dela.Se isto vos parecer enfático, desgraçado leitor, é que nunca penteastes uma pequena, nunca pusestes as mãos adolescentes numa ninfa... Uma ninfa!Ele é bom mesmo pra descrever tesão. Adorava os braços das senhoras. Mas a Capitu, rodo, rodo e volto a ela, Capitu é sensual demais para não trair. Ah,e a descrição do beijo?Não quis, não levantou a cabeça, e ficamos assim, a olhar um para o outro, até que ela abrochou os lábios, eu desci os meus, e ... (...) Não me atrevi a dizer nada; ainda que quisesse, faltava-me língua.Tem um outro aspecto muito interessante do Machado para o qual me chamou a atenção David Jackson, professor de literatura brasileira na Universidade do Texas. Ele também é músico, toca violoncelo. E pesquisa a fundo a Pagu, daqui de Santos. Pois não é que Jackson acha que o Machado é meio Woody Allen, pelo cinismo? No Dom Casmurro, a relação dele com o filho - ele acredita que possa não ser dele, trata-o bem mas gostaria que ele tivesse morrido. E, quando o filho morre, ele fica satisfeito. No filme Crimes e Pecados, o cara tem uma amante que enche a vida dele, e o irmão mafioso o aconselha a matá-la, numa saída machadiana. A princípio, achei a comparação forçada. Mas depois pensei bem e achei válido.Machado fala muito de música nos livros, tinha que gostar bastante. O Décio Pignatari me prometeu, durante anos e anos, escrever um libreto para eu musicar as Memórias Póstumas de Brás Cubas. Outra coisa legal é como ele marcou bem o Rio de Janeiro, aquela vida do segundo império. Ele valorizava também a música mais popularesca. Será que, como em Um Homem Célebre, todo compositor brasileiro se vê necessariamente diante da grande música e da música popular? Não creio que a mestiçagem seja exclusividade nossa. Bela Bartók e Stravinski também destilam esta mesma mestiçagem em suas músicas. Mas não sei se a mestiçagem é o que explica a música brasileira - é, porém, uma coisa que faz a gente pensar, chama a atenção. À primeira vista, acho que sim, porque a música popular das Américas, por força da presença negra, é um tipo de música que não houve na Europa. Só tem nos EUA, no Caribe e no Brasil, onde o negro esteve e está presente. O negro é que deu origem ao jazz, ao calipso e à rumba, e ao choro e ao samba. O negro é que deu origem às músicas populares urbanas nas Américas. Na Europa não tinha nada disso, havia apenas a música folclórica.É interessante ver no Machado sua relação com a música popular urbana. A música, ou melhor, as músicas estão espalhadas por toda a sua obra. Não é a relação do músico europeu com a música popular do seu país, que é apenas o folclore. Lá não rolam nas cidades as misturas de coisas eruditas com as músicas negras, como aqui. Isso gerou a música urbana e é a realidade brasileira, norte-americana e do Caribe.Tudo isso pouco valeria se ele não fosse tão genial. Há pouco tempo peguei o Dom Casmurro para consultar um capítulo, e acabei lendo-o inteiro de novo. O livro tem a força da ressaca, arrasta a gente.

DEPOIMENTO A JOÃO MARCOS COELHO

Curta brasileiro leva troféu em Cannes

Fonte: Jornal Folha de São Paulo - 25/05/08
DA ENVIADA A CANNES

O curta brasileiro "Muro", de Bruno Bezerra, ganhou o troféu Regard Neuf (novo olhar) da Quinzena dos Realizadores, do 61º Festival de Cannes.Também foram anunciados os vencedores da mostra "Um Certo Olhar". O longa brasileiro "A Festa da Menina Morta", de Matheus Nachtergaele, saiu sem prêmios. O ganhador foi "Tulpan" (Sergey Dvortsevoy, Cazaquistão).Já o júri da crítica preferiu o australiano "Hunger" (fome), do inglês Steve McQueen. Entre os concorrentes à Palma de Ouro, a crítica escolheu o húngaro "Delta", de Kornél Mundruczó. O júri ecumênico premiou "Adoration" (adoração), do canadense Atom Egoyan.(SA)

"Mash" mostra que o cinema envelheceu

Fonte: Jornal Folha de São Paulo - 25/05/08
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
O único desgosto de rever "Mash" (TC Cult, 22h) quase 40 anos depois é constatar o quanto o cinema envelheceu nesse período. O que era, em 1970, ainda uma arte jovem, impetuosa e irresponsável tornou-se nesse meio tempo uma expressão respeitosa, sisuda, que procura, na falta de imaginação de um Indiana Jones, por exemplo, prolongar seu estado agônico.
Ok, talvez não seja bem isso, e talvez quem tenha envelhecido nessas quatro décadas seja o mundo. Em 1970, estávamos perto da sublevação vital de 1968. Em "Mash", por exemplo, estamos em um hospital de campanha em plena Guerra da Coréia e ninguém se vexa de achar que um pastor, quando reza, está doido. Na saudável anarquia que ali vigora, Sally Kellerman é uma caxias que, por marotagem dos médicos, passa a se chamar Lábios Ardentes. Pois a anarquia que ali se instaura não pretende tomar o poder, tirar o lugar de ninguém. A lei marcial é uma piada e o objetivo, voltar para casa.É possível mesmo que "Mash" hoje mostre melhor suas virtudes de comédia corrosiva. Na época, havia o Vietnã, e o combate ao militarismo pelo riso podia ser assimilado à campanha pelo fim da guerra. Hoje o filme perdeu esse interesse e se mostra melhor como representação de uma época. É a comédia de um mundo menos controlado, em que mesmo nas ditaduras podia-se sonhar com a liberdade. Hoje sonhamos com crachás e câmeras ocultas.

Santoro vai a Cuba e aos EUA, mas quer voltar

Fonte: Jornal Folha de São Paulo - 25/05/08
61º FESTIVAL DE CANNES
Ator, que fez Raúl Castro em "Che" e filma com Jim Carrey, fala em "investimento" na carreira e "saudade monstruosa"
Após apresentar longas de Steven Soderbergh e Pablo Trapero em Cannes, ele relativiza fama, defende novelas e planeja teatro
SILVANA ARANTES
ENVIADA ESPECIAL A CANNES
"As coisas começaram a se mover." É assim que o ator Rodrigo Santoro, 32, enxerga a fase mais recente de sua carreira.O avanço do trabalho de Santoro além das fronteiras do Brasil ganhou evidência nas duas últimas semanas, quando ele apresentou dois filmes, ambos estrangeiros e em competição pela Palma de Ouro, no 61º Festival de Cannes, o mais renomado do mundo.Em "Leonera" (mãe leoa), do argentino Pablo Trapero, na pele do personagem Ramiro, Santoro vive um passional triângulo amoroso, pelo qual vai parar na cadeia, acusado de assassinato. Em "Che", biografia do líder revolucionário Ernesto Che Guevara dirigida pelo norte-americano Steven Soderbergh, ele é Raúl Castro, o irmão de Fidel e atual mandatário cubano.
Movendo-se de um set a outro, Santoro atuou nos dois longas simultaneamente, no ano passado. "Filmei [a participação em "Che'] em Porto Rico e tinha 20 dias de intervalo até a equipe finalizar [as cenas] e ir para o México, que era minha locação seguinte", conta.
O convite do cineasta argentino o pegou no Brasil num momento em que pretendia dar uma pausa. Ligando de Buenos Aires, Trapero lhe ofereceu "um personagem bastante pequeno, mas fundamental para a história". O diretor descreveu Ramiro como um homem "intenso, que vive um conflito interessante [entre salvar a própria pele ou a da mulher que ama]". Mas o que cativou Santoro na oferta foi uma "suspeita" de Trapero: "Acho que pode ser um desafio para você expressar isso em poucas cenas".
Cuba
Santoro é o tipo de ator que gosta de construir seus personagens com minúcia. Para viver Raúl Castro, estudou uma nova língua (o espanhol) e um país. "Comecei a pesquisar e encontrei uma imagem muito solidificada dele. Só que eu não posso partir para a criação de uma imagem. Então, fiz o que já queria ter feito há muito tempo -ir a Cuba."
Durante o mês e meio na ilha caribenha, Santoro alugou um quarto em Havana Vieja, viajou de jegue a Sierra Maestra e passou dias enfurnado na sede do Instituto Cubano de Cinema (Icaic), vendo imagens de arquivo da revolução. Com um assistente cubano, treinou à exaustão o sotaque de Castro.
"Vivi uma experiência humana sensacional. Essa é uma das coisas que o trabalho me proporciona e que adoro tanto. É o que vou levar da vida. O status, os prêmios, tudo isso é importante, mas o que mais valorizo são as experiências. A preparação é o momento em que conheço o novo, observo, tento não fazer nenhum tipo de julgamento, não ter nenhum preconceito, estar aberto, com o olhar puro. Nessa, você amadurece. Aquilo o transforma."As cenas de Santoro em "Che" não são muitas, mas são divididas com o norte-americano de origem porto-riquenha Benicio Del Toro, que interpreta Ernesto Guevara. "É um ator que admiro muito -o trabalho e as escolhas dele. Só a oportunidade de trabalhar com ele já foi maravilhosa", diz Santoro.
Depois de participar da sessão de gala e da maratona de entrevistas de "Che" em Cannes, o ator retoma agora as filmagens de "I Love You Phillip Morris", em que contracena com outros dois nomes da galáxia hollywoodiana -Jim Carrey e Ewan McGregor.
Sobre seu personagem no filme, a única informação divulgada até agora é que ele tem um caso com o de Jim Carrey. "É um personagem que tem várias surpresas, mas não posso falar mais do que isso. As pessoas acham que a gente faz charme, mas isso é uma regra", diz.
É uma regra dos estúdios de Hollywood, para alimentar expectativas em torno dos filmes e mantê-los sempre sob os holofotes, com as informações sendo liberadas a conta-gotas. Para quem lida com a indústria de celebridades que vem acoplada à do cinema, a barreira a informações não é um problema. Já a fama pode ser um grande incômodo. Para Santoro, foi -no começo de sua carreira, no Brasil.
"É muito brusco quando acontece [o estrelato]. Sou petropolitano [de Petrópolis, região serrana do Estado do Rio], minhoca da terra, fui criado em fazenda. Sou bicho-do-mato, sempre fui, continuo sendo. Vi minha privacidade indo embora, foi complicado entender e aceitar", diz.PolêmicaSantoro se mudou para o Rio na virada dos 18 para os 19 anos. Pouco depois, experimentou o "brusco" sucesso. Quando entendeu que "não era pessoal" o comportamento (aos seus olhos) invasivo da imprensa, Santoro passou a lidar "infinitamente melhor" com o assédio. "Hoje isso é algo que não incomoda. Sinto que de maneira nenhuma preciso encarnar um personagem para dar uma entrevista ou sair na rua. Se não existe uma polêmica em torno de mim, é porque simplesmente não sou assim."Vivendo atualmente mais tempo fora do Brasil do que em sua casa no Rio, ele diz sentir "uma saudade monstruosa" do país, da família, dos amigos e de sua rotina carioca. "Tenho saudade de botar a minha bermuda e surfar. Tenho saudade de descer no Leblon e tomar um suco, uma água-de-coco."
A probabilidade de que Santoro fixe residência em outro país, no entanto, só aumenta. "À medida que as coisas forem acontecendo, que eu continue trabalhando, em algum momento pode ser que tenha uma base em algum lugar, não faço idéia de onde", diz ele.
"No momento, não tenho dinheiro para ter apartamentos. Nesses trabalhos todos que faço, minha remuneração é sempre supertabelada. E, quando estou lá, tenho que gastar para me manter. Isso tudo para mim ainda é um investimento."
Entre "Che" e "I Love You Phillip Morris", Santoro fez outro trabalho internacional. Filmou com Vichy Jenson, co-diretora dos dois primeiros títulos da série "Shrek", a comédia "The Post Grad Survival Guide" (o guia de pós-graduação em sobrevivência)."Estava terminando "Che" quando apareceu esse projeto. Achei o personagem interessante e me aventurei. Era da diretora do "Shrek", que tem um trabalho interessante e diferente. Eu estava vindo do meio do mato. Fui para essa outra história e funcionou como uma reciclagem."
Globo
Embora os papéis de Santoro em filmes internacionais estejam emendando-se uns nos outros, os planos de trabalho do ator no Brasil são muitos e variados, incluindo, além do cinema, o teatro e a TV.
"Estou para resolver minha situação na Globo, mas acho que posso fazer alguma coisa neste ano. Tenho saudade. Minha criação foi ali", diz.Santoro é dos raríssimos [para não dizer o único] atores de sua geração e seu prestígio a defender as novelas. "A TV tem uma coisa mais fluida. Você pega um ritmo. Faz 23 cenas num dia. Acho interessante, diferente. Não acho menor, nem que se possa comparar um capítulo de uma novela com um filme. Não comparo. Tenho respeito por cada um deles e acho interessante para o ator transitar."A volta ao teatro, um projeto antigo, está sendo ensaiada. Sob a direção de Luiz Fernando Carvalho ("Lavoura Arcaica"), Santoro pretende montar um texto da francesa Marguerite Duras. Não há data prevista, porque "para fazer teatro, você tem que parar todo o resto".
No cinema brasileiro, Santoro rodou o ainda inédito em circuito comercial "Desafinados", de Walter Lima Jr., e aceitou o papel do jogador Heleno de Freitas [1920-59] no longa que José Henrique Fonseca deve filmar em 2009 sobre o craque e dândi botafoguense.Antes, talvez diga um "sim" como ator e produtor a algum dos roteiros que estão em suas mãos. Migrar para a direção, movimento que fizeram recentemente os atores Selton Mello ("Feliz Natal") e Matheus Nachtergaele, que apresentou em Cannes seu primeiro longa, "A Festa da Menina Morta", não está nos planos de Santoro."Admiro essa galera toda. Me chamem para participar como ator. Vou adorar. Mas não penso em dirigir. Estou bem envolvido com o trabalho de ator."