segunda-feira, 31 de março de 2008

Tratados de "pobrologia"

Fonte: Revista Veja - 31/03/08

Os documentaristas brasileiros adoram pobreza. Seus filmes sobre o tema já constituem um gênero

Leandro Narloch

A melhor passagem do documentário Babilônia 2000, de Eduardo Coutinho, acontece quando a equipe se aproxima de uma moradora do Morro da Babilônia. Ela está sentada na escada na frente de casa, descascando batatas para uma maionese de réveillon. Cinco equipes passavam o dia na favela entrevistando os moradores e registrando como eles viveriam o último dia de 1999. Quando percebe as câmeras, a mulher diz: "É filmagem para aparecer onde? Espera eu me arrumar, mudar o visual". O cinegrafista é rápido ao dizer que não, que daquele jeito está ótimo, o que faz a mulher soltar uma gargalhada de quem entendeu tudo: "Ah, você quer é pobreza mesmo!". A frase é a descrição certeira de um gênero fértil de cinema brasileiro: os filmes feitos para retratar os pobres como vítimas. O É Tudo Verdade, festival de documentários que começou na semana passada em São Paulo, está repleto deles. Os filmes falam sobre um ex-militante do MST do sertão de Alagoas, famílias mineiras pobres, moradores do bairro paulistano de Cidade Tiradentes, índios, quilombolas e ciganos (ciganos de onde? Do sertão de Alagoas). Essas fitas são produzidas em quantidade digna dos enlatados de Hollywood, e são tão parecidas entre si que quase configuram uma área de "estudo" – algo assim como a "pobrologia".

O gênero tem suas regras. A primeira é a melancolia. Um bom filme sobre pobres precisa ser triste. Veja o caso de Sumidouro, de Cris Azzi, que mostra famílias desalojadas por causa da construção da barragem da Usina Hidrelétrica de Irapé, no Vale do Jequitinhonha. Muitos dos desalojados que aparecem ali gostaram da mudança – ganharam casa nova com energia elétrica e em frente a uma rua pavimentada. Mas o filme é triste, triste. Exibe uma estrada de terra durante 47 segundos, uma dona-de-casa andando pela rua em 75 segundos e ela mesma, logo depois, em irritantes 54 segundos. Em Moro na Tiradentes, com direção de Henri Arraes Gervaiseau e Claudia Mesquita, é a mesma coisa. As entrevistadas parecem felizes porque Cidade Tiradentes, o bairro mais afastado do centro paulistano, está menos violento e enfim ganhou agências bancárias e uma filial das Casas Bahia. Mas o diretor só quer saber de melancolia, ainda que precise fazer perguntas óbvias e sugestivas, do tipo "Não deve ter sido fácil criar quatro filhos, né?".

Outra regra da pobrologia é captar imagens que mostrem beleza na miséria. Primeiro a câmera pega o indivíduo a distância, num cenário impactante. Depois se aproxima até que seu rosto marcado estoure o enquadramento. Um exemplo é Estamira, documentário de 2004 dirigido por Marcos Prado sobre uma catadora dos lixões cariocas que sofre de problemas mentais graves. Psiquiatras não costumam achar bela a imagem de um doente mental sofrendo com seus sintomas. Mas os pobrólogos enxergam na esquizofrênica Estamira uma profetisa que dispara seus vaticínios entre montanhas de lixo revolto.

É fácil entender o que está por trás desses filmes. Um pobrólogo pensa conforme o marxismo didático, para o qual os pobres são do bem e os ricos são exploradores que fumam charuto. Como em geral não nasceu na miséria e tem escolaridade suficiente para preencher os complicados formulários das leis de incentivo à cultura (um curta-metragem custa em média 50 000 reais aos cofres públicos), o pobrólogo sente culpa – e seu filme vira uma expiação. A idéia do bom selvagem, segundo a qual o ser humano nasce bom e é corrompido pela sociedade, tem outro corolário: retratar o pobre é "resgatar" um Brasil puro e autêntico. O problema é que os pobres, para desilusão dos documentaristas, não são interessantes só por serem pobres. É comum, nesse tipo de filme, o pobre passar por silêncios constrangedores durante uma entrevista no sofá de casa, com cara de quem pensa "por que essa gente ainda está me filmando se eu não estou falando nada de mais?".

Claro que existem situações que merecem registro. Um filme é um excelente meio para apresentar fatos desconhecidos, colocar um assunto em pauta e esquentar a agenda pública. Os Carvoeiros, com direção do inglês Nigel Noble e roteiro de José Padilha, ajudou a transformar a vida de crianças que trabalhavam em carvoarias pelo Brasil. Também há casos em que o pobre salva o filme da pobrologia, como Genivaldo Vieira da Silva, retratado no documentário O Tempo e o Lugar. Líder de invasões do MST em Alagoas no fim dos anos 80, ele é hoje um líder comunitário maduro, que lamenta as práticas do passado. E o documentarista Eduardo Escorel escapa por pouco de criticar a mudança, fazendo um bom paralelo entre a trajetória do país e a do personagem. Hoje, Genivaldo negocia com os adversários políticos, veste camisas engomadas e está bem contente com a renda que seus sítios produzirão. Mostra que pobre, na verdade, não gosta de pobreza. Ao contrário dos nossos documentaristas.

Contratados desde a faculdade

Crescimento econômico amplia procura de mão-de-obra e garante emprego antes da formatura

Por RODRIGO CARDOSO

TALENTOS Rafael Kirsten, do mercado financeiro, Débora Noronha, engenheira, e Yuri Clements, do agronegócio: emprego antes de ter o canudo na mão

Há uma revolução em curso no País: a mão-de-obra especializada, recém- formada e capacitada por uma universidade competente nunca foi tão requisitada pelo mercado de trabalho. Esse exemplo de movimentação histórica é perceptível no maior pólo formador de engenheiros, a Escola Politécnica (Poli) da Universidade de São Paulo (USP). Lá, o vice-diretor da instituição, José Roberto Cardoso, conta que quase a totalidade dos alunos que se formaram no ano passado tinha propostas de trabalho ou já estava empregada - e os poucos que ainda não estão no mercado levarão um ou dois meses para ingressar nele.

É um salto tremendo, uma vez que até três anos atrás esse número era de 70% (e a colocação do restante demorava seis meses). "Eu mal recebi o diploma e nem peguei o CREA (certificado de registro do engenheiro) e já fui contratado", conta o engenheiro civil paulista Ruy de Sordi, graduado no ano passado em outro centro de excelência na formação de engenheiros, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Como reflexo de uma economia que não pára de produzir bons resultados - como o crescimento acima da média histórica, a inflação controlada e reservas internacionais suficientes, pela primeira vez, para quitar a dívida externa -, alguns setores pegaram carona nesse eldorado de oportunidades e crescem a galope. Em algumas áreas, como engenharia civil, agronegócio, tecnologia da informação e mercado financeiro, não há gente capacitada para atender à demanda. Por isso, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 90 mil vagas formais não foram preenchidas no ano passado, apesar de nove milhões de brasileiros estarem em busca de emprego.

Outro estudo, patrocinado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) e que ouviu 1.714 empresas em 22 Estados, apontou que mais da metade delas (cerca de 53%) tem problemas com a falta de mão-de-obra qualificada. "No primeiro trimestre de 2005, 7,9% das empresas disseram que a falta de trabalhador preparado era um dos principais problemas enfrentados por elas. No último trimestre do ano passado, 20% deram essa resposta", afirma Renato da Fonseca, gerente-executivo da unidade de pesquisa, avaliação e desenvolvimento da CNI.

OBRA Ruy de Sordi: recém-formado com salário de R$ 3 mil

O caso da engenharia civil é emblemático. Desde 1980, quando o Banco Nacional da Habitação (BNH) estava a plena carga, a construção não atingia índices de crescimento tão fulgurantes como os atuais (estima-se em 10% o crescimento para este ano). Como conseqüência desse desempenho turbinado pela facilidade de crédito imobiliário, engenheiro civil é um profissional raro no mercado. O headhunter Luiz Werver, diretor-sócio da Ray & Berndtson, uma das cinco maiores empresas de consultoria e capital humano do mundo, conta que todo dia recebe pelo menos uma ligação de empresa procurando engenheiro civil.

"Como é difícil achar engenheiro de 30 e poucos anos, experiente, para colocar no mercado, as empresas estão se reinventando. Elas contratam gente nova, talentosa e treina", diz ele. A CNI avaliou essa movimentação em sua pesquisa: 84% das empresas industriais afirmaram investir em programas de capacitação. Com 22 anos, o engenheiro Ruy de Sordy, que trabalha na construção de pistas de provas e pavimentos especiais, frisa: "Engenheiro civil encontra oportunidade na área que quiser e em qualquer lugar do Brasil."

Sordy tinha duas propostas de trabalho antes de se formar. Recusou, inclusive, um convite para um processo seletivo da gigante Odebrecht, para seguir na Construtora Estrutural, onde fez estágio por três meses no final do ano passado, e hoje, efetivado, tem salário de R$ 3 mil - três vezes maior do que na época do estágio. "Não conheço nenhum amigo que queira trabalhar e não esteja trabalhando", diz Sordy.

Engenheiro de produto júnior da GM, Rafael Camin, 24 anos, confirma o cenário cada vez mais visível no País: diploma é sinônimo de proposta de emprego. "Das 25 pessoas que se formaram comigo, todas foram parar no mercado assim que concluíram a faculdade", conta ele, que terminou o curso em 2006 e, somente no último ano da faculdade, recebeu 15 convites para participar de processos seletivos e cinco propostas efetivas de trabalho. Camin, hoje, faz pós-graduação em mecatrônica na Poli - recebe R$ 400 da GM para fazer esta especialização - e vive tranqüilo com um salário de R$ 3 mil. "A demanda fez o salário médio do engenheiro saltar de R$ 1,2 mil, dois anos atrás, para os atuais R$ 4,5 mil", reforça Cardoso, o vice-diretor da Poli.

RH Andrea, da Plascar: 58 estagiários

Diferentemente da engenharia civil, que nos anos 80 e 90 viveu sua "fase perdida", com engenheiros desempregados, o setor de tecnologia da informação (TI) emprega toda a mão-deobra recém-formada há 20 anos. Enquanto o engenheiro civil daquela época emendava um curso atrás do outro após a graduação, já que não encontrava emprego, ou, em atitude extrema, não concluía a faculdade propositalmente para continuar no mercado como estagiário (o único cargo disponível no setor), os profissionais da computação já nadavam de braçada na bonança da profissão.

Tanto que, para tentar atender o mercado, que hoje cresce aproximadamente 15% ao ano, o número de cursos de computação passou de 300 em 1996 para 1,5 mil, no ano passado. "O curso de tecnologia da informação é pouco sexy, passa a imagem de ser um negócio de nerd. Mas está perdendo oportunidade quem não opta por ele. Não existe desemprego no nosso setor. É cursar a faculdade e sair para trabalhar", diz Benjamin Quadros, presidente da BRQ, empresa campeã do ranking de Tecnologia-Software e Serviços de As Melhores da Dinheiro.

Hoje, um milhão de pessoas estão empregadas em TI no Brasil. A relação candidato por vaga no setor é de um para um, de acordo com Mário Fagundes, coordenador de pesquisas do grupo Catho, o maior portal de recursos humanos da América Latina. "Até 2010, haverá a necessidade de 100 mil novos profissionais para dar conta do setor", diz Fagundes. Ele completa o quadro: "Com a falta de capital humano, a alternativa das empresas é baixar a qualificação."

Jovens talentos recém-graduados em uma faculdade renomada de TI são disputados e conseguem emprego até mesmo em grandes pólos da profissão, como o Vale do Silício, na Califórnia (EUA), ou a China, que patrocina feiras ao redor do mundo para atrair profissionais. O paulista Samuel Goto, 25 anos, formou-se em engenharia da computação na Unicamp, em 2006. Naquele ano, ganhou US$ 5 mil em um concurso de projetos de software livre na multinacional Google. Com a premiação, conseguiu um estágio de três meses nos Estados Unidos e, ao final, recebeu uma proposta, no início do ano passado, de efetivação na matriz da Google, em Mountainville.
Goto optou por retornar ao Brasil para casar e fazer mestrado na Unicamp - que ainda cursa. Negociou, porém, sua contratação para o início deste ano. A Google topou e hoje o paulista é engenheiro de software do Orkut, site de relacionamento mundialmente famoso. É ele o autor de inúmeras inovações no site, como, por exemplo, a possibilidade de responder ao scrap na própria página de recados. "Profissionalmente, não tem lugar melhor para eu trabalhar, já que o desafio é grande. Eu trabalho com tecnologia de ponta, ao lado de pessoas que escreveram livros excepcionais que eu lia na faculdade", comemora Goto, que, por contrato, não pode revelar o salário.

COMPUTAÇÃO
Júlia Perdigueiro saiu empregada da faculdade e Samuel Goto foi trabalhar no Google, na Califórnia

Diferentemente do cenário atual, o País, durante décadas, teve um ritmo de desenvolvimento lento e os governantes subestimaram a necessidade de investimento na formação especializada. Hoje, atrair cada vez mais gente para aprender e adquirir competência e certificação em tecnologia, a começar pelo incentivo no ensino médio, é o horizonte que se desenha ante essa carência de mão-de-obra qualificada. É a forma de, no futuro, aumentar a chance de o País exportar mais tecnologia e menos gente de tecnologia.

ENGENHARIA CIVIL
É uma das áreas mais promissoras do momento. Na turma que concluiu o curso no ano passado na Unicamp, por exemplo, 90% dos recém-formados estão no mercado de trabalho. E este número tende a crescer. Segundo cálculo do vice-diretor da Poli (USP), José Roberto Cardoso, cada US$ 1 milhão investido pelo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) implica a criação de uma vaga de engenheiro. Se o governo federal repassar os R$ 500 bilhões (cerca de US$ 294 bilhões) por meio do programa até 2010 como foi prometido, em quatro anos serão necessários mais 294 mil novos profissionais. O Brasil forma, hoje, 26 mil engenheiros por ano. Aproximadamente 30% são civis. É pouco se pensarmos que a Coréia do Sul e o Japão formam 80 mil cada um e a Índia, 150 mil todo ano. "Precisávamos formar pelo menos três vezes mais" diz Cardoso. A jovem engenheira civil Débora Noronha, formada na Unicamp, começou como estagiária na Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL) antes de se formar. Hoje, trabalha na Átria Engenharia, que constrói prédios comerciais e obras residenciais, com salário de R$ 1,5 mil. Segundo Cardoso, da Poli, o crescimento da construção civil no País deve muito a países asiáticos, como a China, que se tornaram fortes importadores de ferro, cimento e vergalhão. No mercado interno, o professor e coordenador do curso de engenharia civil da USP, Mario Senatore, aposta nas grandes obras do PAC. Para tanto, porém, é preciso de mais mão-de-obra capacitada. O Brasil tem 2,48 engenheiros por mil habitantes, número muito inferior ao dos países desenvolvidos.

MERCADO FINANCEIRO
A estabilidade da economia n ão restringiu o mercado de trabalho do setor financeiro. Pelo contrário. Hoje, há uma forte demanda por profissionais nas áreas de banco de investimentos, corretoras de capitais, seguradoras e previdência privada. "O mercado está crescendo de uma forma que não se via há anos", diz Ricardo José de Almeida, professor de finanças da Faculdade de Economia e Administração (FEA), da USP. "Na sala de aula vejo todo mundo com estágio e já nas melhores empresas." Com este céu de brigadeiro, no ano passado, o jovem economista Rafael Passos Kirsten se deu ao luxo de preterir quatro processos de seleção em empresas como Santander e Unibanco pelo estágio que fazia na Victoire, uma empresa de administração de recursos de terceiros. Na época, aluno do curso de economia com foco em mercado financeiro do Ibmec São Paulo, o paulista de 22 anos recebia R$ 600 mensais. Agora, já formado, foi efetivado com um salário de R$ 3 mil. Centro de referência nas áreas de negócios e economia, o Ibmec São Paulo registrou, no ano passado, um aumento de 60% no número de empresas do setor financeiro que tentam garimpar na instituição um jovem talento. Pesquisa do Ibmec verificou que 83% dos formandos em 2006 declararam não ter encontrado dificuldade para entrar no mercado de trabalho - um aumento de 21% em relação aos graduados em 2004. Esse mesmo levantamento revelou que, em 62% dos casos, os ex-alunos que estão empregados recebem em média um salário entre R$ 2 mil e R$ 4 mil.

TECNOLOGIA DA INFORMAÇÃO
Desemprego é uma palavra que não existe na área de tecnologia da informação. A relação candidato por vaga no País é de um para um, ou seja, emprego garantido. A agressividade das empresas de TI é tanta na hora de buscar um jovem talento que, desde o ano passado, a gigante IBM firma parcerias com escolas do ensino médio para incluir em seus currículos disciplinas que cubram as necessidades de mão-de-obra especializada. A IBM ajuda a treinar os alunos de Estados como Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, e dá a eles oportunidade de contratação. É uma das saídas para reverter um quadro crítico: um déficit de 17 mil profissionais nessa área no Brasil - em 2010, esse número deverá chegar aos 100 mil -, segundo um levantamento da consultoria IDC (International Data Corporation). "O Brasil terá déficit de mão-de-obra durante os próximos dez, 15 anos", prevê Deli Matsuo, diretor de recursos humanos da Google para a América Latina. A paulista Júlia Martins Perdigueiro, 24 anos, pesquisou as oportunidades do mercado antes de optar pelo curso de engenharia da computação na Unicamp. Formada no ano passado, ela trabalha como engenheira de softwares júnior do Instituto de Pesquisas Eldorado, referência em soluções tecnológicas inovadoras na área de TI. Júlia começou como estagiária no quarto ano da faculdade recebendo R$ 400. Em pouco mais de um ano, passou a ganhar R$ 3 mil por mês. "Não me vejo desempregada nos próximos anos. O mercado está bom, com muita oferta de emprego", diz Júlia.
AGRONEGÓCIO
O campo de expansão no setor de agronegócio é enorme. Há 90 milhões de hectares de terras no País que podem ser utilizados para a produção agrícola - hoje, 220 milhões já são explorados. "Não tem país no mundo que se compare ao Brasil em agronegócio e possibilidade de expansão", diz o coordenador do curso de gestão do agronegócio da Universidade Federal de Viçosa, Aziz Galvão da Silva Jr. O caminho do sucesso não é apenas produzir cada vez mais. Saber comprar e vender é fundamental e aí entra o profissional de agronegócio para fazer a diferença nessa cadeia. Na área de hortifrutigranjeiros, por exemplo, especialistas estimam que 30% do que se produz se perde entre a produção e o supermercado. É aí que entra o trabalho de planejamento logístico de profissionais como Yuri Clements, funcionário da PricewaterhouseCoopers, a maior empresa de consultoria de agronegócio do mundo. Ex-aluno da Universidade de Viçosa, Clements tinha sete propostas de trabalho antes de se formar. Aos 23 anos, hoje ele ocupa o cargo de consultor assistente de agribusiness da Price - e já recusou quatro outras possibilidades de emprego. Por um salário de R$ 1,4 mil, uma de suas funções é garimpar oportunidades de projetos no setor de carne, cana-de-açúcar e soja. Hoje, existem aproximadamente 100 cursos de gestor de agronegócio no País. Mesmo assim, há uma demanda grande de profissionais por conta do etanol e biodiesel. "Necessita-se de gente capacitada para coordenar a cadeia: quem vai fornecer o produto, fazer os contratos de compra e venda, cuidar dos preços", explica Aziz Galvão.

À espera dos Mecenas

Números da Lei Rouanet mostram que, à exceção da Petrobras, grandes empresas não aproveitam plenamente os incentivos para investir em cultura

Não faltam ao Brasil incentivos fiscais ao financiamento de projetos culturais e esportivos. A experiência de mecenato que mais deu certo até hoje é a da Lei Rouanet, que premia o investimento na área cultural, com ênfase em artes cênicas, cinema e música. Mais recente é a Lei de Incentivo ao Esporte, de dezembro de 2006, que permite o desconto no Imposto de Renda de patrocínios e doações para eventos esportivos. No ano passado, os projetos da Lei Rouanet somaram R$ 891 milhões. No setor esportivo, foram captados R$ 53 milhões para 21 projetos – só a Petrobras entrou com R$ 26 milhões destinados ao Comitê Olímpico. Trata-se de valores expressivos, mas muito aquém do potencial do mercado. Na área cultural, as empresas podem usar a isenção fiscal até o equivalente a 4% do lucro líquido. No caso de projetos esportivos, o teto é de 1% do IR devido. Mas a grande maioria fica longe do abatimento a que tem direito. A rara exceção é exatamente a Petrobras, que, em 2007, investiu R$ 205 milhões, dos quais R$ 180 milhões através da Lei Rouanet. Depois, bem abaixo, aparece a Vale, com patrocínios de R$ 32 milhões. A aplicação de grupos privados, como Ambev, Gol, IBM e Companhia Brasileira de Alumínio (CBA), não chega sequer à casa dos dois dígitos. Essa realidade sobrecarrega a Petrobras, cada vez mais visada pelos produtores culturais e esportivos. “A Petrobras se orgulha de ser a maior parceira da cultura brasileira, mas não pode ter a expectativa tão concentrada nela”, afirma Eliane Costa, gerente de patrocínio da estatal.

Em certa medida, a Petrobras paga um preço alto por sua tradição no mecenato. As demais empresas ou são novas no ramo ou reagem negativamente diante da necessidade de criar áreas específicas para atender os candidatos a patrocínios e doações. O próprio governo federal levou algum tempo para convencer o Banco do Brasil a financiar a seleção feminina de vôlei. Algumas empresas são tão refratárias ao patrocínio cultural que financiam eventos e produções, mas preferem manter o anonimato. Temem que surjam filas de artistas e esportistas em sua porta. E não se mostram dispostas a montar estrutura para atendê-los. Na verdade, não está disseminada no País a cultura do mecenato. O que exige um trabalho de catequese por parte do setor público. O ministro do Esporte, Orlando Silva, por exemplo, tem realizado encontros com empresários para esclarecer sobre as vantagens fiscais embutidas na Lei de Incentivo ao Esporte. No final do ano, ele falou para diretores de 50 empresas, reunidos em evento no Jockey Club de São Paulo. Nesta segunda-feira, fará palestra para outro grupo de empresários, no Rio de Janeiro. Diante do desperdício da isenção fiscal, já existem empresas que reconhecem o erro e admitem rever a política de patrocínio. Uma delas é a Vale, que recentemente tomou a decisão de criar um núcleo de seleção de projetos semelhante ao da Petrobras. Enquanto o novo modelo está sendo elaborado, a Vale prefere não se pronunciar sobre o assunto. A mudança, porém, é líquida e certa, com o objetivo de ampliar o uso dos incentivos fiscais. Afinal, além da isenção, há o retorno positivo em termos de imagem institucional.

Para o ator Carlos Vereza, é um erro responsabilizar apenas as empresas pelo baixo volume de patrocínios. “Os empresários ficam receosos em relação à qualidade de muitos projetos e temem também pelo resultado do investimento”, diz ele. De fato, há muito projeto inviável e mal formulado. Mas o retorno é garantido pela renúncia fiscal da União. Tanto é bom negócio que a Petrobras criou uma estrutura azeitada para receber produtores culturais. Em 2003, a empresa lançou o Programa Petrobras Cultural, que, a cada ano, recebe cerca de nove mil propostas. A triagem inicial é feita por uma comissão de seleção externa. Os finalistas são submetidos ao Conselho Petrobras Cultural, composto de cinco membros: os gerentes de patrocínio e de comunicação da Petrobras, o gerente de comunicação da BR Distribuidora, um representante do Ministério da Cultura e outro da Secretaria de Comunicação da Presidência da República. No julgamento, eles foram auxiliados até o ano passado por um conselho consultivo de especialistas: José Miguel Wisnick (música), José Carlos Avelar (cinema), Jurema Machado (patrimônio), Ana Mae Barbosa (artes) e Arthur Nestrovski (literatura). Ao fim do processo de seleção, cerca de 300 projetos recebem o aval da estatal do petróleo. Vão de patrocínio de cinema, no valor de R$ 1,5 milhão, até gravações de CDs, de R$ 150 mil.

Preocupada em aprimorar a qualidade das propostas, a Petrobras passou a percorrer as principais capitais do País com uma oficina de formatação de projetos culturais. O resultado da iniciativa tem sido excelente, segundo a gerente Eliane Costa. Mas a Petrobras, que utiliza os 4% do lucro líquido, adverte que atingiu o limite de sua capacidade. Seus financiamentos já superam os limites dos incentivos fiscais. A empresa torce para que surjam novos mecenas e também que os mecenas existentes aumentem seus investimentos. Uma andorinha só ajuda, mas não faz verão.

Cinema nacional sem tiros

Filmes como Chega de saudade e Falsa loura provam que a produção brasileira não se limita às histórias sobre a violência urbana

IVAN CLAUDIO

PÉS-DE-VALSA O filme Chega de saudade retrata o universo de freqüentadores de bailes, como os personagens de Maria Flor e Stepan Nercessian

Um lucrativo segmento ganhou força na recente produção de filmes nacionais: o que retrata a violência urbana. De Cidade de Deus a Tropa de elite, passando obviamente por Carandiru, o que se tem é uma sucessão de tiros, sangue e tortura – e também de rentáveis bilheterias.

Intelectuais costumam debater se esse tipo de obra ajuda a conscientizar a sociedade sobre a urgência de políticas públicas nesse setor ou se apenas funciona como gigolô da marginalidade para a obtenção de muito lucro. A discussão é tola: muita gente gosta de ver cenas que envolvem inocentes sendo queimados vivos por traficantes e traficantes sendo sufocados com saco plástico pela polícia – e isso não só nas telas, uma vez que dados recentes apontam que cerca de 40% dos brasileiros não condenam a tortura como método de “arrancar” informação de bandido.
É nessa toada, por exemplo, que Bruno Barreto está finalizando 174 – a infância roubada (sobre o seqüestrador do ônibus 174, Sandro Nascimento) e Marisa Leão, produtora de Meu nome não é Johnny (outro sucesso com tráfico como tema central) negocia a compra dos direitos autorais do livro Abusado, de Caco Barcellos (sobre o traficante Marcinho VP). Há, no entanto, quem esteja virando a câmera para outra direção. Na contramão desse cinema de tiros e “canos” fumegantes, uma produção diversificada (e bem saudável para os olhos e a mente) tenta ganhar espaço. O exemplo mais recente é o filme Chega de saudade, novo trabalho de Laís Bodansky, que estréia em todo o Brasil no feriado da sexta-feira 21. Inteiramente passado num salão de danças em São Paulo, esse filme não tem polícia nem marginal. Mostra apenas uma pequena briga, inocente até, fruto de uma crise de ciúme de um de seus personagens.

Eleito melhor filme pelo júri popular do Festival de Brasília (ganhou também prêmio de direção e roteiro pelo júri oficial), Chega de saudade mostra que as pessoas não querem ver apenas histórias que reproduzem o seu pânico do diaa- dia. E há outros títulos que também estão chegando por esse caminho – Falsa loura, de Carlos Reichenbach (estréia no mês que vem), aborda os desencontros amorosos de uma operária, e Os desafinados, de Walter Lima Jr. (previsto para junho), mostra um grupo de amigos, todos músicos, à época do surgimento da bossa nova. A diretora de Chega de saudade, Laís Bodansky, acredita que o crescimento dessa produção, voltada para temáticas menos apelativas, deve-se a uma maturidade no processo cinematográfico nacional. “Num primeiro momento, os temas mais fortes e emergenciais ganharam atenção. Acho que hoje, com a reconquista do público, existe uma maior receptividade para outros tipos de filme”, diz a cineasta.

A própria trajetória de Laís confirma essa transformação do público. Em plena crise da produção nacional, ela dirigiu um título que se enquadrava nas produções de “tema emergencial”: Bicho de sete cabeças (2001), com Rodrigo Santoro, uma contundente crítica ao sistema manicomial. Ela teve de amargar mais sete anos para chegar de novo às telas. “Na verdade, a minha vontade de fazer um filme sobre o universo dos clubes de dança é anterior ao Bicho”, diz Laís, que costumava freqüentar esse tipo de baile com seu marido, o roteirista Luiz Bolognesi. “Não há como ir a esses lugares e não observar as pessoas. Já nessa época eu e o Luiz conversávamos sobre o potencial de um filme enfocando o assunto, mas não estava na hora.” Não era apenas o enredo, centrado em personagens em sua maioria acima dos 50 anos, que não se mostrava propício. Laís se sentia ainda verde para lidar com uma trama tão complexa.

Não se deve deduzir, a partir disso, que o enredo de Chega de saudade seja fácil, simples ou rocambolesco. Nada disso. A sua estrutura é intrincada. São diversos personagens interagindo e a câmera de Walter Carvalho tem de saltar de mesa em mesa, de casal em casal, passando pelo garçom, pelo técnico de som e pelos músicos da banda (Elza Soares e Marku Ribas à frente). Existem, a exemplo do que ocorre em todo bom filme, aqueles tipos catalisadores de atenção como o técnico de som vivido por Paulo Vilhena, atormentado pelo assédio do coroa sedutor, interpretado por Stepan Nercessian, sobre a sua namorada (Maria Flor) – é esse coroa quem deixa na solidão da mesa a amante de poucas palavras (personagem feita por Cassia Kiss). Outro casal de destaque é o par pé-de-valsa interpretado por Tônia Carrero e Leonardo Villar. “Trata-se de um típico filme de personagens, sobre como eles se transformam numa noite”, diz Laís. “Essa passagem é construída ponto por ponto, mostrando um olhar, uma lágrima que cai.”

NOVOS FILMES, NOVOS ENREDOS

OS DESAFINADOS
Cláudia Abreu e Rodrigo Santoro fazem o papel de dois músicos dos anos 60 no filme de Walter Lima Jr., programado para chegar às telas em junho

FALSA LOURA
Rosanne Mulholland é uma operária enganada pelos namorados no filme de Carlos Reichenbach, que estréia no mês que vêm

ESTÔMAGO
João Miguel faz uma ótima interpretação de um cozinheiro. A estréia do filme está prevista para abril