quinta-feira, 22 de maio de 2008

A morte sob controle

Fonte: Jornal O Estado de São Paulo - 22/05/08

Uma biografia ficcional e um documentário levam às telas visões complementares sobre Ian Curtis, líder da banda Joy Division, que cometeu suicídio aos 23 anos

Lauro Lisboa Garcia

Perder o controle do bem viver é uma ocorrência pontual na trajetória de alguns heróis do rock que partiram jovens e no auge: Kurt Cobain, Jimi Hendrix, Jim Morrisson. As conseqüências da angústia que causou o desaparecimento precoce de Ian Curtis, o misterioso líder do Joy Division, que só conseguiu controlar a morte a seu favor, parecem tão comuns quanto espantosas, como se pode ver em dois filmes complementares sobre ele e sua lendária banda. Control, que estréia hoje em circuito comercial no Brasil, é uma biografia ficcional de Curtis e marca o début do fotógrafo Anton Corbijn na direção cinematográfica. O segundo, Joy Division, que entra em cartaz no dia 6, é um documentário sobre a banda, dirigido por Grant Gee.

O ideal seria que fossem exibidos em programa duplo para facilitar a montagem do quebra-cabeças. De qualquer maneira, ambos são recomendáveis não apenas para os fãs da banda. Até porque, para estes , não há muita novidade além do que já se explorou em livros, biografias, vídeos e outros documentários. Mas, em princípio, cada um com sua linguagem, os novos produtos são bons como cinema. O personagem central é fascinante, em qualquer imagem que se pinte dele. A música e as performances são impactantes, seja da banda original ou dos atores que a representam convincentemente em Control.

Grande parte da qualidade desta biografia ficcional, aliás, está na escolha dos atores. Alguns até se parecem fisicamente com os personagens verdadeiros, principalmente o novato Sam Riley, que impressiona na reprodução detalhista dos trejeitos de Curtis no palco, se contorcendo em movimentos de marionete. Mas, sem um profundo conhecimento visual da banda, isto é uma das coisas sobre as quais o espectador comum só vai se dar conta ao comparar com o documentário. Excertos do livro de memórias Touching from a Distance, da viúva Deborah Curtis, no qual Control é baseado, são projetados entre os depoimentos do documentário. Outra coincidência da ''ficção'' com a realidade é a casa onde Ian e Deborah moraram e que aparece nos dois filmes.

Foi ali que, atormentado pelos efeitos da epilepsia, Curtis se matou no dia 18 de maio de 1980. Tinha apenas 23 anos e o coração dilacerado pelo amor (como diz na célebre canção Love Will Tear Us Apart) dividido entre duas mulheres. Antes de se enforcar na casa onde vivia com Deborah (interpretada por Samantha Morton) e a filha pequena, ele colocou para rodar na velha vitrola um LP de Iggy Pop, intitulado Idiot. A reação imediata que se tem, ao acompanhar essa seqüência em Control, é que ele realmente bancou o estúpido, mas armou o desfecho com senso de humor negro. Tinha pedido para ficar só, bebeu muito, fumou tudo o que pôde. Quis morrer sozinho.

Se em Control o que ressalta é o jovem infiel, o mentiroso, o egoísta, o irresponsável, no documentário o prodigioso artista se recupera. Quem narra sua história em depoimentos e lembranças detalhadas são os que viveram com ele na outra margem: os demais integrantes da banda - Peter Hook, Bernard Sumner e Stephen Morris, que, como se sabe, viriam a formar o também influente New Order -, sua amante belga, Annik Honoré, o guitarrista Pete Shelley, dos Buzzcocks, o fotógrafo Anton Corbijn, o diretor da antológica Factory Records, Tony Wilson, o designer Peter Saville, criador das capas dos álbuns da banda.

Contam os amigos que Curtis nunca se drogava, era a música que o deixava em transe. Em Control nem se nota que eles se divertiam muito o tempo todo, como conta Hook no documentário. O único problema eram os ataques de epilepsia de Curtis, cuja descoberta o deixou irrecuperavelmente arrasado. No início da carreira, quando se dividia entre a música, como compositor e cantor do Joy Division, e o trabalho burocrático de atendimento num hospital, Curtis ficara sensibilizado ao ver uma mulher em situação que ele próprio viveria e escreveu a canção She''s Lost Control sobre isso.

Como Control parte da versão da viúva Deborah, que também é co-produtora do filme, as lentes se voltam mais para o ambiente familiar. Deborah é um pouco o protótipo da dona de casa recatada, às vezes bancando a sofredora, sempre à espera do marido que vive em estúdio, no palco e na estrada, no meio de uma gente estranha (como ele) e de futuro incerto. Piora muito a situação quando ela descobre que o marido estava amarrado em Annik, tratada com superficialidade no filme, por motivos evidentes, mas que dá depoimentos esclarecedores no documentário.

Ela sabia com qual intensidade Curtis se tornava outra pessoa no palco, ao mesmo tempo frágil e forte. Mas como seus outros amigos, ela não se deu conta a tempo de que toda a angústia das letras de Curtis era reflexo de profundos dilemas reais. Não era apenas arte com referências cultas de Kafka, Shakespeare ou Dostoievski. Da mesma maneira como não se decidia a abandonar ou continuar com a banda, o cantor tentou em vão terminar a relação paralela para salvar o casamento, para o qual não estava preparado. Aliança de ouro na mão esquerda não combina mesmo com rock nem poesia punk. Sem conseguir sustentar a farsa por muito tempo, deprimido pelo efeito dos vários remédios que tomava para controlar a epilepsia, fechado em sua caverna sombria e impenetrável, ele perdeu o controle da situação.

O documentário vai mais fundo na influência do cenário apocalíptico da Manchester, em meados do século passado, sobre o moral de seus habitantes. Na industrial, feia, fria e suja cidade britânica, que o Joy Division ajudou a colocar no mapa-múndi musical, uma criança pobre poderia demorar até nove anos para ver uma árvore. Isto é o que diz um dos entrevistados e explica por que não dava mesmo pra fazer música muito feliz ali. Os conterrâneos Morrissey e Johnny Marr, que formaram The Smiths dois anos depois da morte de Curtis, que o digam.

Serviço
Control (EUA-Reino Unido/2007, 121 min.) - Drama. Dir. Anton Corbijn. 16 anos.Joy Division (EUA-Reino Unido/ 2007, 93 min.) - Documentário. Dir. Grant Gee. Estréia no dia 6/6. Cotações: Ótimos

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