quinta-feira, 22 de maio de 2008

Para reconstruir o mito de Cleópatra

Fonte: Jornal O Estado de São Paulo - 22/05/08

Em novo filme, o diretor Julio Bressane recorre aos materiais de construção culturais para evocar o mito da rainha do Egito

Crítica Luiz Zanin Oricchio

O que sabemos de Cleópatra? Muito do que está nos livros, em Shakespeare, etc. Talvez a Cleópatra tenha o rosto (e o corpo) de Elizabeth Taylor, na leitura meio kitsch que fez da rainha do Egito o diretor Joseph Mankiewicz. De certa forma, falar de Cleópatra é escavar um mito. Ou reconstruí-lo, com os materiais disponíveis e acumulados pela cultura. É o que faz o diretor Julio Bressane nesse novo trabalho, vencedor do Festival de Brasília do ano passado.

Valeria a pena dizer que Bressane parece um pouco na contramão do assim chamado cinema de autor brasileiro. Este tem-se definido, grosso modo, pela urgência. Antenado tematicamente na rachadura social brasileira, opta por uma linguagem ágil para se comunicar. São os casos, por exemplo, de O Invasor, Amarelo Manga, Cidade de Deus, entre outros. Não se está querendo dizer que seja possível somar esses filmes na mesma coluna do ponto de vista da linguagem; apenas que existe uma aproximação entre eles nesses quesitos, a temática e a pegada moderna.

Já Bressane planta e colhe em outro território. Parece, como diria Drummond, que não aspira a ser moderno, mas deseja ser eterno. Chega a ser clássico na sua fixação de estilo e no aprofundamento de uma pesquisa pessoal. Cada filme é uma pincelada a mais nessa tela que vai compondo ao longo dos anos. Visita temas universais e personagens quase atemporais, como são os casos de Vieira, em Os Sermões, e São Jerônimo. Em Cleópatra, seu trabalho de arqueólogo o leva a referências variadas, que vão de Plutarco a Camões, tentando trazer até nós uma Cleópatra latina, que coube tão bem na pele de Alessandra Negrini.

Nessa universalidade, sobressai uma brasilidade perceptível. Os elementos pictóricos entram na composição de um Egito recriado no Rio de Janeiro, no qual não faltam músicas como Há Um Deus, de Lupicínio Rodrigues, na voz de Dalva de Oliveira, e Felicidade, de René Bittencourt, cantada por Noel Rosa.

Fotografado por Walter Carvalho, o filme é estruturado como uma série de quadros. Um mosaico que às vezes lembra um pouco outro filme ''arqueológico'', Satyricon, de Fellini. A aproximação entre os dois não é gratuita. Também Fellini, ao ler os fragmentos de Petrônio, despertou para a dificuldade (na verdade na impossibilidade) de pensar como um romano do século 1º da era cristã, quando Satyricon foi escrito por Petrônio Árbitro. Essa impossibilidade, que poderia ser paralisante, foi, ao contrário, utilizada como inspiração e princípio de uma liberdade total de criação. Se não podemos recuar no tempo e ''saber como as coisas de fato aconteceram'', só nos resta recriar, reconstruir, para nos aproximarmos da ''verdade''. Quer dizer, a verdade como construção. Ou melhor, como invenção.

Ao cinéfilo, atento à construção e ao trabalho com a forma e a linguagem cinematográfica, salta à vista o rigor do cineasta e também do fotógrafo. Cada plano é estruturado com sensibilidade visual que raramente se vê, não apenas no cinema brasileiro mas também internacional. Bastante preso à dramaturgia, ao enredo, aos diálogos, o cinema contemporâneo tem abandonado de maneira preocupante o rigor com a linguagem específica dessa arte. Bressane não esquece. E, pelo contrário, revisita a cada novo projeto esse artesanato da imagem - o que, por si só, já justifica o seu cinema.

Mas é claro que não se trata apenas disso, senão estaríamos falando de um formalismo estéril, uma evocação da boa forma que não sai de si mesma. O que entra em jogo nesse projeto de cinema, que é também uma idéia de vida, é um adensamento cultural digno de nota. Há quem veja na Cleópatra de Bressane um comentário sobre a luta pelo poder - e a trajetória da rainha do Egito não deixa dúvida quanto a isso. Tampouco descabida parece a interpretação que fala da tolerância. Afinal, a polis de Cleópatra pode ser lida como tentativa de conciliação de várias culturas até então antagônicas. Tudo isso cabe. Mas é claro que o esplendor estético do filme extravasa generosamente qualquer interpretação reducionista.

Serviço
Cleópatra (Brasil/2007, 117 min.) - Drama. Dir. Julio Bressane. 18 anos. Cotação: Ótimo

Nenhum comentário: