segunda-feira, 26 de novembro de 2007

A metamorfose do mal

No magistral A Vida dos Outros, um espião da Alemanha Oriental descobre a beleza

Isabela Boscov

Sentado à frente da máquina de escrever, com fones de ouvido que filtram a conversa vinda do andar de baixo, Gerd Wiesler, cinqüentão, espião zeloso da Stasi, a horrenda polícia secreta da Alemanha Oriental, é o rosto de um estado que se transformou inteiro numa máquina de vigiar e corromper. Um rosto cinzento que, muito apropriadamente, não tem expressão nem inflexão – de um homem cuja existência ninguém registra, mas que vive de registrar a existência alheia. No início do magnífico A Vida dos Outros (Das Leben der Anderen, Alemanha, 2006), que estréia nesta sexta-feira no país, Wiesler dá a um grupo de futuros espiões aulas sobre técnicas científicas de interrogatório; na cena seguinte, na platéia de um teatro, reage não com a objetividade que prega, mas por instinto. A questão é que espécie de instinto, se profissional ou pessoal. Wiesler olha a figura de Georg Dreyman (Sebastian Koch), bonito, autoconfiante e o único dramaturgo leal ao Partido que também é lido no Ocidente, e se convence de que ninguém pode ser tão perfeito assim. Ou talvez Wiesler tenha se perturbado com o beijo que flagrou, nos bastidores, entre Georg e sua atriz, a bela Christa-Maria (Martina Gedeck). Sejam quais forem seus motivos, no dia seguinte Georg terá deixado de ser o único artista do país livre da vigilância estatal. Wiesler entra em seu apartamento durante sua ausência, esconde microfones por toda parte e, do andar de cima, se transformará no vírus que vai infectar a intimidade de Georg e Christa. No meio do caminho, porém, algo acontece: o espião ouve, em vez de uma conspiração, uma música que o emociona; e, principalmente, escuta nas pequenas interações do casal algo que não conhece, mas que reconhece de imediato como precioso – amor, alegria, atração, beleza, calor. Para sua surpresa e também para seu imenso risco pessoal, ele se reconfigura então de delator em protetor.

Ganhador do Oscar de produção estrangeira deste ano, A Vida dos Outros se passa em 1984, cinco anos antes da queda do Muro de Berlim, quando a Stasi tinha algo como 100.000 agentes a seu serviço, além de uns 170.000 informantes. Mais metódica e paranóica ainda que a KGB russa, a organização mantinha registros de cada uma das máquinas de escrever do país – o que tornava impossível escrever um texto anônimo – e preservava até amostras do cheiro de seus suspeitos, caso fosse necessário procurá-los com cães. A australiana Anna Funder, autora do premiado livro Stasiland, objetou com veemência ao filme: segundo ela, não há, em todos os registros da Stasi, um único indício de que alguma vez um espião tenha protegido seus vigiados. Essa licença poética, porém, é a única que o diretor estreante Florian Henckel von Donnersmarck toma com a história. Em um roteiro primoroso, ele combina os fatos da vida na Alemanha comunista à trajetória de seus personagens de forma indivisível. Cada detalhe factual corresponde a um ponto dramático do enredo. No cinema recente, de qualquer nacionalidade, é difícil pensar num outro filme que atinja essa fusão entre o ficcional e o histórico de forma tão completa; e, no cinema alemão em particular, esse é um exemplar único na sua recusa em romantizar ou relativizar a crueldade que prevalecia do lado de lá do Muro, como o fazia Adeus, Lênin!. Aqui, a supressão do íntimo e do pessoal é absoluta – um pesadelo orwelliano dentro do qual gerações tiveram de viver, dia após dia.

Se A Vida dos Outros é verdadeiramente superlativo, porém, a razão está em Ulrich Mühe, que foi um dos grandes nomes do teatro alemão-oriental, esteve ele próprio sob vigilância da Stasi e submeteu o diretor a duas sabatinas antes de se confiar a ele. Mühe constrói o impassível Wiesler sem nenhum dos recursos práticos de um ator – olhares, gestos, tons de voz. Mais do que encarnar o personagem e sua metamorfose, ele os irradia para a platéia. E, com sua frase final – um simples "É para mim" –, ele demole até a última justificativa possível para a existência de algo como a Alemanha Oriental. Mühe morreu em julho passado, aos 54 anos, de câncer do estômago. Deixou uma carreira não mais do que breve no cinema. Mas, nem que fosse feita unicamente deste filme, ela já seria colossal.

Fonte: Revista Veja - www.veja.com.br - Acesso em: 26/11/07

Nenhum comentário: