segunda-feira, 15 de outubro de 2007

A eterna busca do tempo presente

Fonte: Jornal O estado de São Paulo

15/10/07

Em Hotel Atlântico, Suzana Amaral valoriza ao máximo o trabalho dos atores para contar uma história nada convencional

Flávia Guerra

“Não quero dar entrevista. Não agora”, dizia o ator Júlio Andrade ao Estado, no rancho que a equipe de Hotel Atlântico usava de base para as filmagens em Paulínia, cidade que tem o arrojado projeto de se tornar um dos maiores pólos de cinema do País e que tem oferecido locações e logística invejável para vários filmes nacionais. “Sobre o que você vai perguntar? Do filme ainda não consigo falar”, avisa Júlio, que fez ótima estréia no cinema em Cão sem Dono, de Beto Brant. A pedido da reportagem, no fim de uma jornada de trabalho, Júlio, os atores Jidu Pinheiro, André Frateschi e a diretora se sentam à beira do lago que banha o rancho que serve de base para a equipe e páram para pensar no filme. A conversa explica o porquê da aversão a entrevistas. “Vou adorar falar quando o filme estiver pronto. Mas estamos literalmente no meio do processo e não tenho opinião formada nem mesmo sobre meu personagem”, continua o ator de olhar cortante e atento. Foi este olhar que cativou definitivamente a diretora. “Estava em dúvida sobre alguns nomes. Quando vi Cão sem Dono, decidi. Tinha de ser o Júlio. Ele tem nos olhos a surpresa de que meu protagonista precisa.” Sorte dele. Suzana é responsável por trazer para as telas o talento de atrizes como Marcélia Cartaxo (descoberta num grupo de teatro e vencedora do prêmio de melhor atriz no Festival de Berlim de 1986 por A Hora da Estrela) e Sabrina Greve (também escolhida no palco para Uma Vida em Segredo. que integrou a Semana da Crítica do Festival de Cannes, e eleita a melhor atriz pela APCA em 2001). Na tarde em que o Estado percorreu um trecho da estrada de Hotel Atlântico, dividiam a cena com Júlio os atores Jidu Pinheiro e André Frateschi. “Fiz um curta que ainda não estreou”, conta Jidu. Frateschi fez uma participação em O Cheiro do Ralo, mas a cena foi cortada. “Do meu filme você não sai”, brincou Suzana, que também incluiu em seu elenco nomes como João Miguel, Lázaro Ramos, Mariana Ximenes, Helena Ignês e Paula Braun.O trio se dizia privilegiado por ser dirigido por Suzana. Raro exemplo no cinema nacional, a diretora, que cursou cinema na Escola de Comunicações e Artes da USP e na New York University, aposta no método de Sanford Meizneck, um dos principais professores de interpretação dos EUA. Traduzindo em linhas gerais, o que de fato importa para ela é que “atuar é a realidade de viver o tempo presente”. E esse lema ela não aplica só ao trabalho com os atores. A metamorfose ambulante em que se torna sua equipe não está desconfortável com a falta de respostas. Pelo contrário. É a dúvida que alimenta cada dia de trabalho. “Não falo nada. Meus atores chegam e tomam conta do set antes que o resto da equipe chegue”, acrescenta a diretora, depois de passar o dia dirigindo o trio que viajava de carro por uma estrada. Suzana está disposta a subverter a relação diretor-ator. “É uma das poucas que coloca o ator na frente do processo”, diz Jidu. “Só ´pastoreio o que os atores criam.” Raridade, não? “É. Mas ela realmente nos deixa mais livres”, completa Frateschi. “É mais divertido. Cada um traz suas propostas. Desburocratiza o trabalho”, diz Júlio. Suzana rebate: “Não sou diretora de trânsito. Sou centralizadora, mas na minha equipe todos pensam juntos. Tento manter a coerência.”Quando questionada sobre por que adaptar um terceiro livro, responde: “A razão principal é que não dou roteiro para atores. Dou o livro. Deixo que pensem nos personagens. Com o roteiro, eles decoram as falas e o filme deixa de ser espontâneo.”De roteiro, ela entende. “Já li centenas em tantas comissões de seleção que integrei. É tanta literatura chinfrim. Roteiro tem de ser concreto. Nao pode ter palavra bonita. É ação. O resto é conversa. É a inteligência do ator. É o subtexto que importa.”E por que desta vez contar uma história masculina? “Não é um filme sobre homens nem para homens. Não sei por que cismaram que faço filmes para mulher. Eu falo sobre o ser humano. Todo mundo ama. Todo mundo sofre. Não sou feminista. E não sofro nenhum preconceito no set por ser mulher.” Mas Suzana não nega que esteja adorando fazer filmes com homens. “Passei um mês no meu sítio em Atibaia preparando o filme com eles”, brinca. E para eles? É diferente ser dirigido por uma mulher? “É. Mas com a Suzana a gente não pensa nisso. Falamos de absolutamente tudo ”, conta Júlio. “Passamos o tempo em Atibaia comendo comida da horta. Um diretor jamais ia se preocupar com o que a gente come”, brinca Frateschi. Pode parecer brincadeira, mas a preparação busca a essência da história na convivência com os atores. Nesta busca, não há espaço para artificialismos e truques de roteiro. Na trama, os atores vão e vêm ao sabor do caos que Suzana retrata. “Preciso que eles estejam espontâneos e preparados. Tirando o Alberto (Júlio), os personagens não são sempre os mesmos. Não é trama tradicional.”É a tensão da mudança que dá energia à história. “É um filme episódico. Nada que acontece tem ligação. Nem com o passado. Nem com o futuro. É uma sucessão de acontecimentos não vinculados em uma narrativa do aqui e agora. Foi isso que me atraiu.” Esse caos não traz angústia e dúvida? “Exatamente. Traduz o momento que vivemos. Mas sou adepta da filosofia budista. Vivo o tempo presente”, diz ela, em busca de um ‘cinema do despojamento’. “Quero falar do ser de hoje, da descartabilidade dos acontecimentos atuais. Quem for esperando um filme comercial não vai entender. Todos os meus filmes começam, na cabeça das pessoas, quando a luz acende”, reflete. E brinca: “Até agora, ninguém entendeu o roteiro. Todo mundo achou uma porcaria. Mas vocês vão ver quando ficar pronto e dizer: ‘Nossa, que p... filme!”

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