sábado, 20 de outubro de 2007

Quatro vezes o talento de Gael

Data: 20/10/07

Ator, diretor e produtor fala sobre filmes, diretores, mulheres e amor

Luiz Carlos Merten

Quem leu, anteontem, a entrevista de Hector Babenco na abertura da 31ª Mostra Internacional de Cinema talvez se surpreenda ao saber que Gael García Bernal desmente seu diretor em O Passado. Babenco disse que após a filmagem, ao levar Gael para o aeroporto, perguntou-lhe por que quis fazer o papel. Gael teria respondido que era filho de pais separados, não falava (nem via) o pai há anos quando ele ressurgiu em sua vida e o levou ao cinema. O filme era Pixote. “Hector não me levou ao aeroporto. E eu vi Pixote em Londres, quando lá estudava, aos 16 anos”, ele conta. A pergunta vem, inevitável - se não foi como Babenco conta, por que ele quis fazer O Passado? “Em primeiro lugar porque tinha muita vontade (ganas) de trabalhar com Hector. E gostei do roteiro, que despertou em mim a vontade de fazer um filme de amor, coisa que não fazia há tempos.” A versão do diretor é tão bonita - apesar da sinceridade de Gael - que dá vontade de lembrar John Ford. Print the Legend, dizia o mestre no desfecho de O Homem Que Matou o Facínora, um dos grandes westerns crepusculares do cinema. Quando a versão é melhor, imprima-se a versão.

Gael chegou a São Paulo na quinta-feira, para uma curtíssima estada. Veio prestigiar a exibição de O Passado e falar um pouco sobre outros três filmes aos quais está ligado, no evento deste ano. Gael García Bernal pode virar o ‘muso’ da 31ª Mostra. Além de O Passado, é ator e diretor (sua estréia) em Déficit, atua em Sonhando Acordado, de Michel Gondry, e produz - por meio da empresa Canana, que fundou em parceria com outro astro mexicano, Diego Luna - Cochochi, de Laura Amélia Guzmán e Israel Cárdenas. Ele se admira - achava que eram só três. O filme de Gondry é do ano passado. Gael adora o diretor. “É muito inventivo.”

Houve outro motivo para que Gael quisesse fazer O Passado. “Queria voltar à Argentina”, ele conta, e o filme é muito argentino, com esse personagem de jovem-velho (como o define o diretor) que é tipicamente portenho. “Rimini é diferente dos outros personagens que tenho criado. Ele é dependente. É um personagem cujas mulheres e as palavras o guiam do princípio ao fim. Rimini tem uma relação distinta com cada uma delas. São as mulheres que o conduzem até onde deve chegar.” É curioso que Gael cite as palavras, porque uma das características marcantes do filme é que, nos 10 ou 15 minutos finais, Rimini quase não fala. Deve dizer duas ou três palavras, uma frase. Gael atua muito mais com o físico, o olhar, os gestos do que propriamente com a palavra. É difícil?
“Havia muita coisa difícil neste filme, mas por isso ele era estimulante. O amor é uma vertigem física vivida pelos personagens. Eles, principalmente as mulheres, se jogam na paixão”, ele diz. Embora a citação a Adèle H, de François Truffaut, não se refira exatamente a isso - o filme entra para dar a (des)medida das mulheres que amam demais -, Babenco compartilha, com o autor francês, dessa certeza de que ele (e seus personagens) vivem o amor como embate entre o gesto impulsivo e a palavra consciente. Além do roteiro, sobre o qual trabalhou, Gael leu, naturalmente, o livro de Alan Pauls em que Babenco se baseou. O filme elimina partes inteiras do livro. Há uma parte sobre um pintor, que culmina com o roubo de um quadro, que deve ocupar umas 50 páginas. Babenco tirou tudo.

“Não senti falta. Creio que a história do pintor era outra história, paralela à de Rimini e suas mulheres.” Ele não contesta as escolhas do diretor. “Não - porque ele é quem tem o filme na cabeça. O prazer de participar de um filme como este é se entregar à batuta de um maestro como Hector.” Ele desmente insinuações, que saíram na imprensa internacional, de que teria brigado com o diretor, como brigou com Pedro Almodóvar, durante a realização de Má Educação. “É o tipo do boato maldoso que certas pessoas gostam de difundir.” Babenco contou que Gael ajudou no processo de seleção das atrizes - Analía Couceyro, Moro Anghileri e Ana Celentano. “Foi muito rico trabalhar com elas, mas tem de ser assim. Se não houver interação, não há prazer.”

Quando iniciou a filmagem de O Passado, Gael estava em pleno processo de montagem do filme que assinala sua estréia como diretor - Déficit. É a história do filho de um político corrupto (e influente). Durante um fim de semana numa casa da família, fora da Cidade do México, Cristóbal - é o nome do personagem - estabelece um jogo de poder com as mulheres e os amigos, mas o tema do filme é a sua crise, a vontade de ser ele mesmo. “O que me atraiu foi essa idéia de trabalhar sobre um personagem da classe alta, coisa que nunca havia feito antes. Ele carrega o peso dos atos do pai e a idéia é justamente discutir a responsabilidade individual. Não precisamos seguir com os erros que nos são impostos.”

Ele não pensou em outro ator para fazer o papel? “Pensei, sim. Até por ser minha estréia, queria ficar mais livre, para me dedicar só à direção. Ocorre que chegamos em cima da rodagem sem um ator definido e, a esta altura, já estava tão envolvido com o personagem que decidi fazê-lo eu mesmo.” Foi um filme experimental feito em digital, com baixíssimo orçamento. “A idéia era justamente viabilizar uma produção de baixo custo, sem nenhuma ajuda. Não podemos ficar nos queixando de que falta apoio, que falta isso ou aquilo. É preciso fazer. Formávamos uma equipe jovem - todo mundo na faixa de 30 anos, ou menos. Como trabalhávamos com vídeo, podíamos repetir bastante. Foi assim que, embora tivéssemos um roteiro-guia, pudemos improvisar bastante. Duas ou três cenas, inclusive, foram acrescentadas ao roteiro em função do que descobríamos na filmagem.”

Haver-se transformado, ele próprio, em diretor mudou alguma coisa na maneira de Gael atuar, ou entender o cinema? “Com certeza, sim”, ele diz. “Entendo agora melhor o ponto de vista do diretor.” Por falar em diretores, Gael trabalhou com Alejandro González Iñárritu (Amores Brutos e Babel) e Alfonso Cuarón (E Tua Mamãe Também), que constroem hoje uma carreira internacional, consagrados em Hollywood. Isso o surpreende? “Não, pois são muito inteligentes e dominam sua linguagem. E os dois são generosos. Não se preocupam só com eles. Gostam de apoiar. Ambos têm um lado paternal muito forte. Considero-os meus mentores.” Em matéria de diretores, ele dedica um carinho todo especial a Walter Salles, com quem fez Diários de Motocicleta. Embora tenha convivido com filhos de exilados políticos, quando garoto, no México, ele diz que foi Walter quem lhe permitiu descobrir o Brasil. E Carlos Reygadas, que ganhou o prêmio da crítica no Festival do Rio, com Luz Silenciosa? “Carlos é um amigo muito exigente. Gostaria de trabalhar com ele, mas não dá. Carlos só utiliza atores não profissionais.” Sobre a empresa que criou - Canana -, esclarece. “Não queremos, nem Diego nem eu, viabilizar só nossos projetos. Cochochi nos chegou, nos apaixonamos pela idéia. Resultou num filme maravilhoso.”

(SERVIÇO)
Cochochi, de Israel Cárdenas, Laura Guzmán. Cinesesc: Hoje, 20h10. Unibanco Arteplex 1: Dia 25, 18h50. HSBC Belas Artes 2: Dia 28, 16h30. Cotação: Ótimo
Déficit, de Gael García Bernal. Faap: Hoje, 19h30. Cinesesc: Dia 22, 15h10. Cinemateca. Dia 26, 15h10. Cotação: Regular
O Passado, de Hector Babenco. Cinesesc: Dia 24, 22h10. Cine Bombril 1: Dia, 26, 18h10. Cinemark Eldorado: Dia 28, 19 h. Cotação: Bom
Sonhando Acordado, de Michel Gondry. Cinemateca: Hoje, 19 h. Cinesesc: Dom., 13h30. Cotação: Regular

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